Retrospectiva 2020 (Interlúdio) -- O que são "Mídias Bolsonaristas"

(Lembrete: como discutido início da parte 1, essa postagem se restringe a usar como fonte mídias bolsonaristas)

Essa postagem é meio que um “interlúdio”. Eu quero comentar sobre como é difícil definir bem o que exatamente deveria contar como “mídia bolsonarista”.

Como eu expliquei na primeira postagem dessa série, eu to tentando usar somente “mídias bolsonaristas” pra explicar por que eu acho o nosso atual governo absolutamente incompetente. A minha idéia não é ser necessariamente “anti-Bolsonaro”, mas sim “anti-incompetência”… e é só uma infeliz “coincidência” que o governo Bolsonaro seja um governo incompetente.

Como eu também expliquei na primeira postagem, eu comecei a escrever essas postagens por causa de uma pessoa próxima que eu conheço. Deixa eu nomear essa pessoa: de agora em diante eu vou chamá-la de “Fulano”. O Fulano me mandou um vídeo (abaixo) basicamente dizendo que o Bolsonaro tinha, desde o princípio, trabalhado pra dar a vacina pro povo (o que é falso: o Bolsonaro fez tudo o que pôde pra impedir a produção da Coronavac). Ficou óbvio que ele pensava que o Bolsonaro é um bom governante. Eu lhe disse que achava que ele tava mal informado, e sugeri que lesse/ouvisse/assistisse mais Globo, Folha e Estadão1. Foi aí que ele me disse que não via notícia da TV (Globo, Band) faziam dois anos. Não achava que eram notícias confiáveis.

(eu vou refutar tudo o que eu puder desse vídeo na última postagem dessa série. Tá tudo errado nesse vídeo)

Aí eu me perguntei “mas então o que que é notícia confiável”. Eu supus que houvesse algum canal que o Fulano tratasse como “aceitável”. Eu ponderei o seguinte: o Bolsonaro parece ter uma relação “cordial” com alguns canais (Jovem Pan, Record e o programa do Datena na Band, por exemplo). Então provavelmente esses canais sejam canais “confiáveis” pra essa pessoa. É por isso que as minhas postagens anteriores usam notícias somente da Jovem Pan e da Record.

Mas será que as notícias dessas mídias são realmente diferentes? Quando eu olho as notícias produzidas pela Record ou pela Jovem Pan, eu vejo que as notícias normalmente contém quase todos os mesmos fatos que as notícias da Folha ou da Globo. A Record não deixou de noticiar os dois colapsos que houve em Manaus (um no ano passado, e um nesse ano), e a Jovem Pan não deixou de noticiar que o Pazuello mudou o discurso quando, do nada, deixou de falar em “tratamento precoce” com cloroquina e passou a falar em “atendimento precoce”. Quando eu escrevi as outras postagens dessa série, não foi difícil encontrar no R7 manchetes basicamente idênticas às da Folha pra maior parte dos fatos que eu estava buscando. Ou seja, as notícias produzidas por essas mídias não são lá tão problemáticas: isoladamente, parece que os fatos são noticiados direitinho, e todo mundo diz mais ou menos a mesma coisa.

Ok… mas onde tá o problema então? Deixa eu dar o exemplo de um canal que eu venho seguindo há bastante tempo, e que me deixa cada vez mais de queixo caído com seu conteúdo.

O caso da Jovem Pan

Desde lá pelo meio de 2019, eu comecei a me impôr uma “dieta” semanal mais ou menos balanceada de notícias. Nos fins de semana, eu consumo a Semana da Pan, “um resumo dinâmico de tudo o que foi destaque na” programação da Jovem Pan durante a semana que se passou. Nos dias de semana, eu escuto o podcast Café da Manhã, da Folha de São Paulo (com notícias “de esquerda”). Com o tempo, eu também incluí alguns outros podcasts: eu escuto sempre o Xadrez Verbal pra saber de política internacional, e também o Roda Viva. Por um tempo eu escutei o Mamilos, porque eles pareciam ter umas pautas mais “esquerda-irritante” que eu usava como um (como elas próprias dizem) “exercício semanal de respeito e empatia”; mas eventualmente eu os troquei pelo Viracasacas, que é igualmente difícil de engolir. Ultimamente, pra contrabalancear, eu venho consumindo um certo outro podcast um pouco mais “direitista” (apesar de o objetivo não ser tão “esquerda” ou “direita”): o Gamboacast.

Ok… mas o foco aqui é na Jovem Pan. O programa Semana da Pan tenta ser um “resumo” da programação da Jovem Pan; mas o que ele acaba sendo de verdade é um grande programa de opinião. O programa menciona umas 5 ou 6 grandes notícias da semana, e mostra a “análise” de uns certos “jornalistas” sobre o assunto. A programação semanal da Jovem Pan tem uns quantos programas de opinião, como o “Morning Show”, o “Três em Um”, e um “Os Pingos nos Is”. Todos eles são “iguais”: tem uns “jornalistas” (ou “comentaristas políticos”), e eles basicamente fazem comentários (a opinião deles mesmo) sobre entrevistas com gente importante, ou notícias do momento, ou até tuítes de gente influente.2 A opinião dos comentadores normalmente aponta pra uma certa “direção” ideológica. Por exemplo, tem comentadeiros que normalmente são super a favor do governo (como o Rodrigo Constantino) e tem outros que consideram o governo ruim (tipo a Thaís Oyama). Assim, esses “comentários” deles são muito previsíveis: se a notícia é ruim pro governo, o Constantino tenta defender o governo (ele sempre dá um jeito de dizer que a oposição faz a mesma coisa e, portanto, ela tá errada), e a Thaís Oyama tenta bater no governo. E vice-versa.

O efeito que isso tem é que esses programas de opinião contam uma “história” do mundo pro ouvinte. E é impressionante como as pessoas esquecem dos detalhes que ficam faltando nessa “história” (que pode parecer coesa e bonitinha, mas na realidade é cheia de furos e não é nem de longe real). As histórias que cada comentarista conta são completamente independentes das notícias que a Jovem Pan publica no seu site (que, como eu falei antes, sao ok, e são bem parecidas com as da Folha ou da Globo). Deixa eu dar um exemplo. Eu aleatoriamente peguei qualquer vídeo do Semana da Pan (o primeiro que apareceu) e busquei por uma opinião do Guilherme Fiúza (que eu acho especialmente ruim). Vamos assistir à opinião dele sobre o discurso do Bolsonaro na Assembléia Geral da ONU (começa aos 6min15):

Basicamente, ele diz que o discurso do Bolsonaro foi ótimo, e que quem não concorda tá errado. Que o Bolsonaro faz tudo certo, e todo mundo que discorda está “desafiados a listar onde estão, nas ações do Estado no Brasil, a linha autoritária / nazi-fascista / pouco democrática” de que falam. Ele continua dizendo que não vão encontrar, porque não existe.

Mas é mesmo verdade isso? Eu acho que o problema é “o que conta como anti-democrático”? Conta como nazi-fascista fazer uma propaganda na TV com simbologia nazista? Conta como anti-democrático oferecer um medicamento que não funciona contra a COVID? (a cloroquina) Ou conta como anti-democrático reduzir a representação da sociedade civil em Conselho Nacional do Meio Ambiente? Ou conta como anti-democrático quando o Presidente do Executivo participa de protestos contra os poderes Legislativo e Judiciário, como aconteceu no ano passado? (inclusive com direito ao Bolsonaro dizendo que não quer negociar nada com o Congresso)

Mais recentemente, eu poderia perguntar: é anti-democrático que o governo, sabendo que faltaria oxigênio em Manaus desde o dia 8 de Janeiro, não tenho feito nada pra impedir o desastre?

No fim das contas, a realidade das notícias acaba perdendo a importância pra quem assiste ao canal. O que importa mesmo é a história que eles contam. E a loucura é que eles mudam essa história o tempo todo. Como eu já mencionei na minha primeira postagem, o Osmar Terra tá há um ano adiando a previsão dele de quando seria “o fim da pandemia”. E, importante lembrar, é claro que isso não é exclusivo da Jovem Pan. O Caio Coppolla fala merda na CNN, e o Rodrigo Constantino tinha ido pra Record por um tempo.

Ao longo do ano passado, algo que me deixou bastante impressionado foi que a quantidade de comentadores que são críticos ao governo na Jovem Pan foi cada vez mais diminuindo. De cabeça, eu consigo agora rapidamente pensar em gente como a Vera Magalhães (que foi pro Roda Viva), o Fefito (que era a voz mais “esquerdopata” do Morning Show), o Felipe Moura Brasil (que surpreendentemente costumava ser bastante anti-Bolsonarista no “Os Pingos no Is”), o Josias de Souza, e a Thaís Oyama. Ao longo dos últimos ~15 meses, todo esse pessoal foi desaparecendo do Semana da Pan pra dar lugar a um certo Guilherme Fiúza, um Marc Souza, um Tomé Abduch e até uma (ex-atleta chamada) Ana Paula Henkel (que aparentemente foi bronze no vôlei nas Olimpíadas de Atlanta), que só têm elogios pro governo e sempre encontram uma desculpa super esfarrapada pra explicar a incompetência bolsonarista. Ainda tem quem xingue o governo, mas é bem mais restrito. De cabeça agora, eu só consigo pensar no Joel Pinheiro da Fonseca; mas eu acho o trabalho meio “infeliz”: ele tá lá só pra tretar com o Adrilles Jorge, uma pessoa que só fala merda, e acaba fazendo com que certas opiniões que não deveriam nem ser levadas a sério acabem recebendo uma importância bem maior do que elas merecem.

Alguém poderia estar lendo isso e pensando “tá, mas, e daí?”. Eu acho que essa “guinada” tem um efeito interessante em quem só assiste à Jovem Pan: a pessoa passa a achar que o que os comentaristas dizem no canal é “o consenso”. Como as vozes discordantes foram sumindo, quem só assiste ao canal acha que todo mundo concorda com o que é dito ali. Se eu não consumisse outras mídias (como a Folha e a Globo), eu acharia que o governo Bolsonaro nem é tão ruim assim, e nem saberia dos problemas que ocorrem no país. Por exemplo, em Dezembro houve um vazamento de dados do Ministério da Saúde contendo informações sobre 243 milhões de brasileiros (vivos ou mortos), mas isso não foi notícia na Semana da Pan, e eu só soube através do Estadão.

Voltando ao Fulano

Ok, mas qual o efeito que esses programas de “opinião” têm na opinião final do Fulano? A resposta pra isso é complicada. Tipo… eu acho que o Fulano na verdade não acredita em mídia nenhuma. Eu acho que ele não só não assiste à Globo e não lê a Folha; mas também não assiste à Jovem Pan ou à Record. Eu acho que o Fulano não acredita nas notícias. Eu acho que na cabeça dele se instaurou um estado de completa desconfiança quanto a qualquer mídia. Esse estado é muito problemático, porque eu creio que são justamente as notícias que ele deveria consumir.

Eu acho que o Fulano, então, passou a só consumir “opiniões”. A idéia seria a seguinte. Em vez de fazer como eu, que fico consumindo tanta notícia de tudo que é lado, tentando ter uma “dieta balanceada” de notícias da esquerda e da direita, o Fulano não vê quase nada de notícia. De vez em quando, ele provavelmente recebe “informação” em grupos do WhatsApp, vindas de amigos em quem ele confia, com frases como “Assista antes que apaguem. Aqui está a verdade sobre as vacinas”. Nesses vídeos, alguém fala alguma groselha sem apresentar fontes, mas com muita veemência (como o Guilherme Fiúza ali em cima). Essa groselha, inclusive, tem chance de ter sido produzida justamente num canal como a Jovem Pan ou a CNN. Com um senso de “evangelismo”, de que a “verdade” foi revelada ao Fulano e agora ele tem o dever de ensiná-la a todos os que não a conhecem, o Fulano publica essa informação em outros grupos de WhatsApp, e o ciclo continua.

Como o Fulano tá desinformado (porque não consome notícia), ele não consegue discernir o que é verdade e o que é pura groselha. Um lugar muito louco onde todas essas “verdades” se acumulam é (pasmem) o canal do Youtube do Bolsonaro. Aquilo é quase um fã-clube: tem um monte de vídeos só contando uma história que ignora todos os problemas e mostra o Bolsonaro como uma pessoa maravilhosa / boa / competente (tem inclusive as lives do Bolsonaro e as entrevistas do Bolsonaro com o Datena, que, novamente, disseminam uma quantidade enorme de groselha). Um belo dia o Fulano encontra o canal do Bolsonaro, e começa a consumir toda aquela lambança. É claro, todo dia novas “verdades” vão também sendo produzidas (que nem precisam se encaixar perfeitamente no resto da história, contanto que os detalhes fiquem esquecidos), pra manter a pessoa naquela realidade. Pronto… dali em diante, o Bolsonaro tem o controle da “realidade” em que aquela pessoa vive.

Assim, no fim, o que conta como “mídia bolsonarista” acaba se tornando muito difícil de responder. Os próprios bolsonaristas não têm uma “lista” de “fontes confiáveis”. Só que existe uma lista de mídias que falam bem do governo, e esses vídeos (especificamente só esses vídeos) são respostados no canal do Bolsonaro. É como se o Bolsonaro desse um “selo de qualidade” pra esses vídeos… como que dizendo “a mídia mente, mas dessa vez eles não tão mentindo”. Por “acaso”, esses vídeos normalmente vêm dos mesmos veículos de comunicação (Jovem Pan, Record News, Datena). Pra mim, esse é o mais próximo que eu consigo chegar de definir o que seriam as “mídias bolsonaristas” de que eu fico falando aqui. Como eu disse, as notícias produzidas por essas mídias são ok; mas as opiniões disseminadas por elas não. É uma dinâmica muito louca… e esse foi o meu esforço pra explicar a bizarrice dela. A minha crença, no fim das contas, é de que, pra conseguir combater esse tipo de desinformação, é necessário que as pessoas consumam mais notícia de mais fontes, e não menos, como muita gente pensa que deveria.

Notas de Rodapé

  1. Por que Globo, Folha e Estadão? Basicamente, porque o objetivo era “equalizar” um pouco “pra esquerda” o viés que o Fulano tava recebendo de um jornal como esse do vídeo acima. Todos os jornais omitem alguma informação e tentam entregar “mastigadinha” alguma história da realidade. Mas cada jornal omite uma coisa diferente. O vídeo ali é de uma emissora catarinense filiada à Record, que segue a mesma “historinha” da Record. Se o Fulano consumisse um pouco mais da Globo, provavelmente apareceria uma outra história que também faz sentido, mas que “conflita” com a historinha da Record. Nenhuma necessariamente “mente”, mas cada uma “distorce” os fatos pra que eles se encaixem na historinha que elas querem contar. Esse é o jogo aqui. 

  2. Eu acho exagerado chamar de “jornalista” essa gente que só dá comentário na TV. Pra mim essa gente é só “pitaqueira”… só “fazedor de tititi”, só “velha futriqueira”. Por isso, daqui pra frente, eu não vou chamá-los de “jornalistas”, e sim de “comentadores”.