Em direção a um Português *mais* neutro

Disclaimer: eu não conheço a literatura sobre “linguagem neutra”, e tem o perigo de que o modo como eu vou usar o termo aqui não seja o “típico” nessa literatura. Especificamente, uma amiga interessada no assunto uma vez fez uma distinção entre “gender-neutral language” [linguagem de gênero neutra] e “gender-fair language” [linguagem de gênero justa], e eu não sei se eu entendo bem essa distinção. Também tem o perigo de que o que eu vou dizer já tenha sido dito por alguém mais. Isso não muda muito o meu interesse em pelo menos “experimentar” com a idéia, e eu aceito opiniões/sugestões de coisas pra ler.

(Aliás… eu já escrevera essa postagem há um tempão; mas sempre me sentia “inseguro” pra postá-la. Hoje, porém, vi essa putaria na internet e não resisti)

Ok… eu quero começar essa postagem dizendo “daonde eu venho”, ou seja, “de que ponto de vista” eu olho esse assunto. Línguas são um assunto que sempre me interessou: eu sempre achei bonito ver as relações entre as palavras, e entender, por exemplo, que, ainda que extremamente desconectadas na nossa cabeça, existe uma relação histórica entre palavras como “agressor”, “regredir”, e “congresso”, ou, por outro lado, que tem relação entre pedófilo e pederasta, mas que essas últimas palavras não têm relação com pedômetro ou pedir. Eu também sempre achei interessante a idéia de ter uma versão do Português que fosse melhor “ordenada” nesse aspecto. Por exemplo, se eu estiver em meio a grupo de pessoas e, ao chamar alguém, disser “a gente vai dar a volta na quadra”, de repente fica incerto se eu tô dizendo que “eu e umas outras pessoas vamos dar a volta na quadra”, se eu tô dizendo que “eu e a pessoa com quem eu to falando vamos dar a volta na quadra”, ou se eu to dizendo que “as outras pessoas vão dar a volta na quadra” (os lingüístas usam o conceito de “clusividade” pra se referir a esse tipo de ambigüidade, e inclusive tem línguas que fazem uma diferença entre o $nós_{\text{eu e tu}}$ e o $nós_{\text{eu e os outros mas não tu}}$). Eu sempre achei esse tipo de “desestrutura” deselegante, e achei que a gente poderia fazer melhor. (mas bem… línguas são vivas, e o que seriam das nossas línguas sem os nossos verbos irregulares para os quais os gramáticos adoram cagar regra?)

Aí, lá quando eu tava pra fazer o meu vestibular, eu lembro de ter ouvido falar pela primeira vez num grupo de pessoas que queria usar “x” ou “@” no lugar da marcação de gênero. Ou seja, dados os exemplos abaixo, preferiam o exemplo 1b ou o exemplo 1c do que o exemplo 1a.

1a. Todos vieram à festa ontem
1b. Todxs vieram à festa ontem
1c. Tod@s vieram à festa ontem

De cara, eu achei isso a idéia mais burra do mundo: oras, se a gente já tem uma vogal neutra (o “e”), que é usada em um monte de palavras “unissex” como “presidente”, “gerente”, “importante”, “recente”, “dependente”, “assistente”, “presente”, …, pra que colocar um um “x” no lugar? Hoje eu presumo que historicamente isso seja o resultado de essas pessoas imperialisticamente (e ironicamente, honestamente) importarem suas pautas dos EUA (cuja língua não tem tal vogal mágica). Mas como a minha opinião “não importa” demorou quase uma década pra eu finalmente ver que eles eventualmente começaram a concordar comigo e tomar o “e” como a vogal ideal.

Mas então… meu problema agora é que a “neutralidade” desse pessoal é limitada demais. As pessoas estão contentes em dizer “todes” e “amigues”, mas não tão dispostas a levar até o fim as mudanças que eles próprios querem impôr. Talvez demore uma outra década, mas o que eu proponho é que se vá mais a fundo!

(Antes de seguir eu só quero avisar: tudo isso vai soar *cringe*! Isso é absolutamente normal. Toda mudança numa língua soa cringe mesmo, a não ser que seja adotada por todo um grande grupo de uma só vez, e ainda assim pode soar cringe pra quem não a adota. Como exemplo de cringe desse tipo, talvez seja “instrutivo” lembrar do “anauê” dos integralistas [mas meu ponto é exclusivamente lingüístico: eu não to comparando o movimento LGBT com o integralismo]. A sugestão abaixo também pode soar “utópica”. E é mesmo! Eu não “pretendo” ou “espero” que seja adotada – isso tá aqui só como uma opinião solta sobre um assunto que me interessa só como alguém-que-trabalha-com-lingüística. Mas se isso fosse um dia adotado eu obviamente não iria reclamar :-). Finalmente, a discussão abaixo pode soar um pouco “infantil”. Sobre isso, bem, eu diria que é assim que eu espero que soem mesmo as idéias malucas de acadêmico excêntrico que eu resolvi escrever aqui xP Eu inclusive fiquei pensando “o que vão pensar de mim” e até ponderei se era mesmo “razoável” eu postar isso aqui; mas o negócio aqui não é “ser razoável”, mas simplesmente “dumpar” umas idéias malucas de tempos em tempos, e essa é só mais uma delas.)

A Proposta

A Wikipédia tem um artigo sobre gênero neutro em Português que sugere um monte de “alternativas” pra “desgeneralização” das palavras que tentam tornar “palatável” a adoção dessa neutralidade pra “população em geral”. Eu honestamente acho essas idéias “radicais de menos” pra quem em geral é (ou tenta ser) mais radical do que eu. A minha crença é de que as pessoas só vão adotar essas mudanças quando elas as ouvirem com freqüência e sentirem que isso é “normal”. Por exemplo, depois que eu passei a usar “vós” (que, sim, eu digo), essa palavra passou a soar beeem menos formal pra mim do que a palavra a que todo mundo tá acostumado (“você”). Eu acho que a desgeneralização das palavras teria um efeito similar.

O Português é cheio de substantivos que terminam das formas mais diversas. Quem prega essa “linguagem neutra” gosta pegar alguns substantivos e pronomes e permitir-lhes umas certas terminações novas. Assim, (pegando um exemplo do artigo supracitado da Wikipédia) em vez de “dois garotos e duas garotas”, a pessoa diria “quatro garotes”.

Pois bem… eu sugiro ir mais além. Eu sugiro um desgeneralização de TODAS as palavras. Eu sugiro que a marcação de gênero seja uma marcação de ênfase. Além disso, eu sugiro que TODAS as palavras que terminem em “-o” tenham SEMPRE uma flexão possível de gênero, de forma que a versão com “-o” seja a versão marcada como “masculina”. Assim, as pessoas diriam

2a. *Normalmente:* Quatre garotes
2b. *Em caso de ênfase:* Dois garotos e duas garotas

Eu iria mais além e instituiria essas regras inclusive pra TODAS as palavras com terminação em “-e”

3a. Presidente -- Presidento -- Presidenta
3b. Importante -- Importanto -- Importanta

, e inclusive com os substantivos masculinos advindos da primeira declinação do latim (que normalmente denotavam ocupações), como

4a. Astronaute -- Astronauto -- Astronauta
4b. Especialiste -- Especialisto -- Especialista
4c. Artiste -- Artisto -- Artista

. Eu inclusive abusaria do fato de que a gente tem três opções pra plurais terminados em “-ão” e faria

5a. Função: Funçães -- Funções -- Funçoas
5b. Alemão: Alemães -- Alemões -- Alemoas (esse eu já uso, aliás, naturalmente)
5c. Dragão: Dragães -- Dragões -- Dragoas (aliás... qual o plural "de verdade" de "Dragão"?

. Por acaso, note-se que palavras terminadas em “-ão” também variam naturalmente (minha vó diz “congestã”, e minha professora da escola dizia “questã”; no Rio Grande do Sul a gente se refere a uma mulher bem branca como “alemoa”). Por que não, então…

6a. Funçãe -- Função -- Funçã / Funçoa
6b. Alemãe -- Alemão -- Alemã / Alemoa

Note-se, inclusive, que muitas palavras (como inclusive alguns dos exemplos acima) só têm gênero porque nós os atribuímos. Pra essas, usar-se-ía invariamente o gênero neutros (mas é foda querer insistir nessa regra, porque é sempre possível que surja um contexto muito específico em que faça sentido marcar o gênero da palavra – por exemplo, numa historinha em que o objeto foi antropomorfisado). Outras palavras têm terminações mais “diversas”, como (exemplos daqui)

7a. Açúcar
7b. Algoz
7c. Raiz

, e pra elas, eu sugeriria que só fosse possível marcar o gênero no plural, ou seja,

8a. Açúcares -- Açúcaros -- Açúcaras
8b. Algozes -- Algozos -- Algozas
8c. Raízes -- Raízos -- Raízas

. Já palavras terminadas em “-us” e “-is” eu sugeriria que fossem tratadas como se terminassem em “-os” e “-es” (ou seja, os exemplos 2, 3 e 4 acima seriam os relevantes). O motivo é que na fala a gente já não faz diferença nenhuma entre os dois tipos de terminação, e ela só “existe” porque alguém decidiu que essas palavras são escritas assim. Portanto,

9a. Ônibes -- Ônibus -- Ônibas
9b. Lápis -- Lapos -- Lapas

. Essas se confundem com palavras plurais de substantivos terminados em -u como “degrau” ou “sarau”. Eu sugiro:

10a. Degrae -- Degrau -- Degraa
10b. Sarae -- Sarau -- Saraa
10c. Degraes -- Degraus -- Degraas
10d. Saraes -- Saraus -- Saraas

É claro que os adjetivos que concordam em gênero seguiriam as mesmíssimas regras,

11a. Bonite -- Bonito -- Bonita

. Porém, eu acho que só vale a pena sugerir especificamente o que poderia acontecer com aquelas quatro palavras que a gente herdou diretamente do latim: melhor, pior, maior e menor. Como as palavras têm 2000 anos e já não marcam gênero nenhum, eu não vejo por que mudar. Eu, porém, mudaria seus plurais:

12a. Melhores -- Melhoros -- Melhoras
12b. etc...

Da mesma forma, eu sugeriria que os particípios ficassem como são hoje. Por exemplo, na frase “eu tinha comido”, ele não muda: é “comido” independente do gênero de “eu”; mas na frase “ele foi mandado pra casa” a palavra “mandado” concorda em gênero com “ele” (no caso, ficaria “mandade”).

O artigo supracitado da Wikipedia também tenta sugerir novos pronomes “neutros”, e inclui uma tabela enorme com “ilu”, “elu”, “el”, e tudo o mais. O que ele não tenta fazer é mudar os pronomes que a gente já tem pra que a coisa fique mais elegante. Pra mim isso é pensar muito pequeno… é uma “arte” muito feia só colocar um pronome lá pra dizer que “colocou”. Se é pra ser radical, por que não ser realmente radical? Eu sugiro o seguinte: que se mude TUDO! Que se reinclua um artigo neutro (o “e” – ou seja, os nossos artigos seja como 11a) e que os pronomes demonstrativos agora sejam também “desgeneralizados” (como em 11b e 11c).

13a. e -- o -- a
13b. Isse -- Isso -- Issa
13c. Esse -- Esso -- Essa

Eu não sei se ficou claro, mas a diferença entre “isse” e “esse” ainda é a mesma que no nosso Português de todo dia. Por exemplo, ainda se diriam coisas como

14a. "Isse é e que eu te falei" [isso é o que eu te falei]
14b. "Esse é e pessoe de que eu te falei" [essa é a pessoa de que eu te falei]

Óbvio que isso é válido pra outros pronomes também,

15a. Algume -- Algumo -- Alguma
15b. Nenhume -- Nenhumo -- Nenhuma
15c. Ele -- Elo -- Ela
15d. Eles -- Elos -- Elas

, e válido pra preposições quando elas vêm “acompanhadas” de artigo, como

16a. Pele -- Pelo -- Pela -- (sem artigo:) Por
16b. Ne -- No -- Na -- (sem artigo:) Em
16c. Pre -- Pro -- Pra -- (sem artigo:) Pra
16c. De -- Do -- Da -- (sem artigo:) Di

. Como dá pra ver, eu não, eu não mudaria a versão “sem artigo” da maioria das preposições; mas eu sinto que a confusão é bem grande se não houver uma diferença entre o “de” sem artigo e o “de” com artigo neutro, e por isso eu sugeriria o “di”.

Pronomes possessivos merecem uma atenção especial aqui. É que eles variam bastante: “meu – minha”, “teu – tua”. O que eu faria seria simplesmente substituir o “a” por “e” nesse caso,

17a. Minhe -- Meu -- Minha
17b. Tue -- Teu -- Tua
17c. Sue -- Seu -- Sua
17d. *(mas, claro)*: Dele -- Delo -- Dela

. Finalmente, pra dar espaço pra que o “e” adquira o seu sentido de “vogal do gênero neutro”, eu sugiro que a gente mude a grafia da conjunção “e” pra “i”, por exemplo,

18a. Ele foi comer ne padarie i já volta

. Afinal, esse “e” já é quase que invariavelmente pronunciada “i”, à exceção de em alguns dialetos pequenos, por exemplo, no sul do Brasil (que os grupos que defendem essas propostas vão de qualquer forma desqualificar como “hegemônicos”), que podem perfeitamente permanecer dizendo “e” da mesma forma que a gente hoje em dia já diz “i” (e vai permanecer dizendo) no fim das palavras terminadas em “e”. (ou seja, por exemplo, “cacete” é pronunciado “kassêtchi”.)

Da mesma forma, eu sugeriria que a gente trocasse o “o” em muitos lugares onde ele não parece um artigo (como em “o que” ou “do que”) por “u”, pra deixar claro que isso não é masculino.

Ahh… existem algumas palavras e expressões que são “congeladas” na língua hoje. Por exemplo,

19a. Eu não gostei *mesmo* dessa música
19b. *Tanto* ela *quanto* ele gostam dessa música.
19c. Essa é *tão* boa *quanto* aquela.
19d. Ela não é nem *alguém* nem *ninguém*

Com toda essa regularidade na nossa língua, isso seria um presente pros parnasianos, que teriam todo o espaço pra se deleitar. Mas bem, como eu não sou parnasiano, eu vou tentar fazer uma prova de conceito do que eu acho que isso significaria pra construção de uma nova linguagem “neutra”. (caso algo fique obscuro demais, ou caso eu cometa algum erro – porque é difícil escrever assim –, tem uma “tradução” depois)

E Motivaçãe

Deixa eu tentar esclarecer melhor e motivaçãe de minhe opiniãe. É importante levar sempre em condiseraçãe que es língües mudam e tempe tode: e Latim foi mudando ae longue des sécules, i deu origem (entre outres) ae que e gente chama di Português. E próprie Português de tempe de Pero Vaz di Caminha (ne link tem ume transcriçãe du que tá escrite ne carte; mas ume versãe em “Português atual” pode ser lide aqui) é bem complicade di ler hoje em die, i, naturalmente, foi mudando i dando lugar ae que e gente hoje chama di Português “moderne”. Esses mudançes ocorrem di váries formes. Muites deles ocorrem di forme natural/pupular/vulgar: e “pove” (e “vulgus”, em Latim), muites vezes sem acesse a educaçãe, fala di ume certe forme (aes vezes inclusive com e intuite di reproduzir e mode como “es elites” falavam), i esse certe forme (por exemple, diz coisas como “a nível de”, ou mesmo “obrigado”) aes pouques “invade” e vocabulárie des elites, que eventualmente tornam esse forme e “padrãe” i adotam isse como “certe”. Outres vezes, e processe é e oposte: es elites sugerem que ume certe forme seje e “correte” e, di tanto martelarem e negócie ne cabeçe des pessoes, e língüe muda. E exemple-mor disse ne escrite é e treme, que es elites decidiram que “tem que cair”, i caiu. (mas tem UME MONTE di outres exemples que pra mim sãe e cúmule de bobagem.) Mas também tem outres ne fale, como, por exemple, que e verbe haver fica sempre singular quando ele significa “existir” em frases come “há três biblioteques ne Universidade” (inclusive, e gente já chegou ae ponte em que e verbe haver agora tá virando ume preposiçãe).1

Es lingüistes em geral observam esses mudançes come se eles fossem ume fenômene “físique”. E objetive é descrever es mudançes i criar teories que expliquem come eles ocorrem i prevejam quando/como eles se desenvolvem. E lingüiste em geral não tá interessade em defender necessariamente ume língüe contra ume certe mudançe (ou em fomentar ume outre mudançe que ele pense que é interessante), mas em coletar dades i prever u que vai acontecer ne future, dades es condiçães atuais de sociedade onde esse língüe está sendo falade. Assim, de ponte di viste de lingüístique como ume ciêncie social, esses mudançes não são “boes” ou “ruins”, ou, melhor dizendo, são tão “boes” ou “ruins” quanto, por exemple, es mudançes di estade físique de ágüe.

Agora, saber de existêncie des mudançes di estade físique de ágüe permitiu a cientistes ume conjunte enorme di “aplicaçães”. Por exemple, dá pra transformar e energie mecânique de vapor di ágüe em energie elétrique, e isse foi súper útil pra e gente chegar ae munde moderne di hoje. De mesme forme, em tese seria possível falar em “aplicaçães” daquile que es lingüistes descobrem pra “melhorar” e sociedade ou alcançar certes objetives específiques. Por exemple, ae minhe redor ne Brasil sempre foi normal falar em “psicóloga”, ne feminine, e isse talvez dê aes pessoes ume imagem – possivelmente inclusive subliminar – di que psicologie é algue “pra mulher” (acho que isse é bem comum com “cabeleireira” ou “enfermeira” também).2 Di fate, isse é justamente e que e ciêncie aparentemente vem desconbrindo nes últimes anos (ainda que valha e pene ficar com ume pé atrás e tomar com cuidade e evidêncie, porque esse discussãe está claramente envenenade por ume quantidade imense di ideologie). Assim, é clare que é di se esperar que es cientistes comecem a ponderar sobre como é possivel usar e língüe pra “melhorar” (dade ume métrique sobre u que significa “ser bom”) e sociedade, e é justamente aqui que entra e “linguagem neutre”.

Esses aplicaçães podem ser úteis, mas pra algumes pessoes eles são simplesmente desinteressantes (literalmente, ou seja,] eles não são algue que es mova). Aqui, avle e pene fazer ume diference entre “ciêncie di base” e “ciêncie aplicade”. Como e próprie nome diz, e cientiste “aplicade” é e que busca “aplicar” e conhecimente que já se tem. Deixa eu dar ume exemple que eu acho interessante: imagine-se que e Universidade onde eu estudo aqui ne Alemanhe tenha ume convênie com ume escole em um outre país, através de qual ele recebe tode ane ume certe númere di pessoes pra fazer e sue bacharelade aqui. Imagine-se também que esse convênie tem ume únique grande restriçãe: que todes es alunes têm que passar nume teste di alemãe ae final di ume ane, i que se eles falharem eles têm di voltar pre sue país di origem sem diplome i sem e perspective di future que ele lhes permitiria. Assim, fica clare que seria bom se houvesse ume forme di selecionar es alunes di tal forme que es alunes selecionades tivessem ume chance relativamente grande di aprender e língüe rápide e suficiente. Pra cases como esse, e cientiste aplicade seria ideal: ele tentaria encontrar algume forme di selecionar es estudantes pra que e maior númere deles conseguisse passar ne teste depois di ume ane. Esse cientiste aplicade, porém, provavelmente não vai tirar de cu esse “forme di selecionar es estudantes”. Em vez disse, provavelmente ele vai se basear ne conhecimente que já foi adquiride através daquile que e gente chama di “ciêncie di base”… e “ciêncie pele ciêncie”, que busca por respostes pra perguntes que não têm ume clare utilidade prátique direte.

Pois bem… esse histórie tode é só pra dizer que eu sou ume “cientiste di base”, i que tode esse negócie di “aplicaçãe” di lingüístique não me interessa nem ume pouque.3 Assim, quando eu vejo e língüe mudando, eu só me interesso nele como “fenômone”. Como ume físique talvez ache certes fenômenes físiques “bonites” ou “elegantes”, eu tenho também ume intuiçãe sobre e língüe como “bonite” i “elegante”, mas esse intuiçãe é bastante independente de quão útil ou “bom” e língüe esteja se tornando. Assim, é com base nesse “quadre mental” que eu gostaria que es movimentes sociais fossem “mais a funde” ne “neutralidade” de sue Português. Porque esse “neutralidade” é elegante e bonite, de ume forme que só faz sentide se eu olhar pre língüe sem ume “utilidade” pre ele.

(Es detalhes específiques desse “intuiçãe” di que eu falei acima me requereriam escrever muite coise, i vão acabar ficando pra ume outre postagem.)

Tem ume últime coise que eu queria falar antes di terminar esse postagem. Fica bem escancarade que esses sugestães di mudançes que eu escrevi acima são super drástiques, e aí pode ser que alguém me argumente que e que eu to sugerindo é que se fale ume coise que “nem é mais Português”, como fica justamente notável nu quão difícil é ler esse texte aqui. Talvez esse seja ume nove língüe, artificialmente construíde, fortemente baseade ne Português, que possa viver “ae lade de Português”. Sobre isse, eu diria: é, pode ser. Mas vale considerar se e distâncie desse texte pre Português é tããããoooo maior du que e distâncie de nosse Português pre carte de Pero Vaz di Caminha (que é tratade como “Português”) ou mesmo pre traduçãe de Bíblie de João Ferreira di Almeida, di 1681 – se bem que pra mim e Bíblie soa suuuuper compreensível, talvez porque eu já conheça bem e Bíblie. (deixa eu pôr aqui ume exemple di algue conhecide que não é nem criaçãe de Camões nem de Renato Russo)

¹ Ainda que eu falaſſe as lingoas dos homens, e dos Anjos, e naõ tiveſſe caridade, ſeria como o metal que tine, e como o ſino que retine.

² E ainda que tiveſſe [o dom] de profecia, e conheceſſe todos os ſecretos, e toda a ſciencia: E ainda que tiveſſe toda a fé, de tal maneira que traſpaſſaſe, e naõ tiveſſe caridade, nada ſeria.

³ E ainda que diſtribuiſſe toda minha fazenda pera mantimento [dos pobres] e ainda que entregaſſe meu corpo pera ſer queimado, e naõ tiveſſe caridade, nada me aproveitaria.

⁴ A caridade he paciente: he benigna: A caridade naõ he envejoſa: A caridade naõ faz ſem razaõ, naõ ſe incha.

⁵ Naõ trata indecentemente: Naõ buſca ſeu proveito: Naõ ſe agaſta: Naõ cuida mal.

⁶ Naõ folga da injuſtiça: Mas golfa da verdade.

⁷ Tudo encubri, tudo cree, tudo eſpera, tudo ſuporta.

⁸ A caridade nunca ſe perde: Mas quanto ás profecias, aniquiladas ſeraõ: E quanto ás lingoas, ceſſaraõ: E quanto a o conhecimento, ſera aniquilado.

⁹ Porque em parte conhecemos, e em parte profetizamos.

¹⁰ Mas quando a perfeiçaõ viér, entonces o que he em parte ſerá aniquilado.

I Coríntios XIII, 1-10 (Tradução João Ferreira de Almeida, 1681)

Sei lá… já devaneei bastante por hoje… fico por aqui…

(“traduzindo”): A Motivação

Deixa eu tentar esclarecer melhor a motivação da minha opinião. É importante levar sempre em consideração que as línguas mudam o tempo todo: o Latim foi mudando ao longos dos séculos, e deu origem (entre outros) ao que a gente chama de Português. O próprio Português do tempo do Pero Vaz de Caminha (no link tem uma transcrição do que tá escrito na carta; mas uma versão em “Português atual” pode ser lida aqui) é bem complicado de ler hoje em dia, e, naturalmente, foi mudando e dando lugar ao que a gente hoje chama de Português “moderno”. Essas mudanças ocorrem de várias formas. Muitas delas ocorrem de forma natural/popular/vulgar: o “povo” (o “vulgus”, em Latim), muitas vezes sem acesso a educação, fala de uma certa forma (às vezes inclusive com o intuito de reproduzir o modo como “as elites” falavam), e essa certa forma (por exemplo, diz coisas como “a nível de”, ou mesmo “obrigado”) aos poucos “invade” o vocabulário das elites, que eventualmente tornam essa forma o “padrão” e adotam isso como “certo”. Outras vezes, o processo é o oposto: as elites sugerem que uma certa forma seja a “correta” e, de tanto martelarem o negócio na cabeça das pessoas, a língua muda. O exemplo-mor disso na escrita é a trema, que as elites decidiram que “tem que cair”, e caiu. (mas tem UM MONTE de outros exemplos que pra mim são o cúmulo da bobagem.) Mas também tem outros na fala, como, por exemplo, que o verbo haver fica sempre singular quando ele significa “existir” em frases como “há três bibliotecas na Universidade” (inclusive, a gente já chegou ao ponto em que o verbo haver agora tá virando uma preposição).1

Os lingüistas em geral observam essas mudanças como se elas fossem um fenômeno “físico”. O objetivo é descrever as mudanças e criar teorias que expliquem como elas ocorrem e prevejam quando/como elas se desenvolvem. O lingüísta em geral não tá interessado em defender necessariamente uma língua contra uma certa mudança (ou em fomentar uma outra mudança que ele pense que é interessante), mas em coletar dados e prever o que vai acontecer no futuro, dadas as condições atuais da sociedade onde essa língua está sendo falada. Assim, do ponto de vista da lingüística como uma ciência social, essas mudanças não são “boas” ou “ruins”, ou, melhor dizendo, são tão “boas” ou “ruins” quanto, por exemplo, as mudanças de estado físico da água.

Agora, saber da existência das mudanças de estado físico da água permitiu a cientistas um conjunto enorme de “aplicações”. Por exemplo, dá pra transformar a energia mecânica do vapor de água em energia elétrica, e isso foi súper útil pra a gente chegar ao mundo moderno de hoje. Da mesma forma, em tese seria possível falar em “aplicações” daquilo que os lingüistas descobrem pra “melhorar” a sociedade ou alcançar certos objetivos específicos. Por exemplo, ao meu redor no Brasil sempre foi normal falar em “psicóloga”, no feminino, e isso talvez dê às pessoas uma imagem – possivelmente inclusive subliminar – de que psicologia é algo “pra mulher” (acho que isso é bem comum com “cabeleireira” ou “enfermeira” também).2 De fato, isso é justamente o que a ciência aparentemente vem descobrindo nos últimos anos (ainda que valha a pena ficar com um pé atrás e tomar com cuidado a evidência, porque essa discussão está claramente envenenada por uma quantidade imensa de ideologia). Assim, é claro que é de se esperar que os cientistas comecem a ponderar sobre como é possível usar a língua pra “melhorar” (dada uma métrica sobre o que significa “ser bom”) a sociedade, e é justamente aqui que entra a “linguagem neutra”.

Essas aplicações podem ser úteis, mas pra algumas pessoas elas são simplesmente desinteressantes (literalmente, ou seja, elas não são algo que as mova). Aqui, vale a pena fazer uma diferença entre “ciência de base” e “ciência aplicada”. Como o próprio nome diz, o cientista “aplicado” é o que busca “aplicar” o conhecimento que já se tem. Deixa eu dar um exemplo que eu acho interessante: imagine-se que a Universidade onde eu estudo aqui na Alemanha tenha um convênio com uma escola em um outro país, através do qual ela recebe todo ano um certo número de pessoas pra fazer o seu bacharelado aqui. Imagine-se também que esse convênio tem uma única grande restrição: que todos os alunos têm que passar num teste de alemão ao final de um ano, e que se eles falharem eles têm de voltar pro seu país de origem sem diploma e sem a perspectiva de futuro que ele lhes permitiria. Assim, fica claro que seria bom se houvesse uma forma de selecionar os alunos de tal forma que os alunos selecionados tivessem uma chance relativamente grande de aprender a língua rápido o suficiente. Pra casos como esse, o cientista aplicado seria ideal: ele tentaria encontrar alguma forma de selecionar os estudantes pra que o maior número deles conseguisse passar no teste depois de um ano. Esse cientista aplicado, porém, provavelmente não vai tirar do cu essa “forma de selecionar os estudantes”. Em vez disso, provavelmente ele vai se basear no conhecimento que já foi adquirido através daquilo que a gente chama de “ciência de base”… a “ciência pela ciência”, que busca por respostas pra perguntas que não têm uma clara utilidade prática direta.

Pois bem… essa história toda é só pra dizer que eu sou um “cientista de base”, e que todo esse negócio de “aplicação” de lingüística não me interessa nem um pouco.3 Assim, quando eu vejo a língua mudando, eu só me interesso nela como “fenômeno”. Como um físico talvez ache certos fenômenos físicos “bonitos” ou “elegantes”, eu tenho também uma intuição sobre a língua como “bonita” e “elegante”, mas essa intuição é bastante independente do quão útil ou “bom” a língua esteja se tornando. Assim, é com base nesse “quadro mental” que eu gostaria que os movimentos sociais fossem “mais a fundo” na “neutralidade” do seu Português. Porque essa “neutralidade” é elegante e bonita, de uma forma que só faz sentido se eu olhar pra língua sem uma “utilidade” pra ela.

(Os detalhes específicos dessa “intuição” de que eu falei acima me requereriam escrever muita coisa, e vão acabar ficando pra uma outra postagem.)

Tem uma última coisa que eu queria falar antes de terminar essa postagem. Fica bem escancarado que essas sugestões de mudanças que eu escrevi acima são super drásticas, e aí pode ser que alguém me argumente que o que eu to sugerindo é que se fale uma coisa que “nem é mais Português”, como fica justamente notável no quão difícil é ler esse texto aqui. Talvez essa seja uma nova língua, artificialmente construída, fortemente baseada no Português, que possa viver “ao lado do Português”. Sobre isso, eu diria: é, pode ser. Mas vale considerar se a distância desse texto pro Português é tããããoooo maior do que a distância do nosso Português pra carta do Pero Vaz de Caminha (que é tratada como “Português”), ou mesmo pra tradução da Bíblia do João Ferreira de Almeida, de 1681 – se bem que pra mim a Bíblia soa suuuuper compreensível, talvez porque eu já conheça bem a Bíblia. (deixa eu pôr aqui um exemplo de algo conhecido que não é nem criação do Camões nem do Renato Russo)

¹ Ainda que eu falaſſe as lingoas dos homens, e dos Anjos, e naõ tiveſſe caridade, ſeria como o metal que tine, e como o ſino que retine.

² E ainda que tiveſſe [o dom] de profecia, e conheceſſe todos os ſecretos, e toda a ſciencia: E ainda que tiveſſe toda a fé, de tal maneira que traſpaſſaſe, e naõ tiveſſe caridade, nada ſeria.

³ E ainda que diſtribuiſſe toda minha fazenda pera mantimento [dos pobres] e ainda que entregaſſe meu corpo pera ſer queimado, e naõ tiveſſe caridade, nada me aproveitaria.

⁴ A caridade he paciente: he benigna: A caridade naõ he envejoſa: A caridade naõ faz ſem razaõ, naõ ſe incha.

⁵ Naõ trata indecentemente: Naõ buſca ſeu proveito: Naõ ſe agaſta: Naõ cuida mal.

⁶ Naõ folga da injuſtiça: Mas golfa da verdade.

⁷ Tudo encubri, tudo cree, tudo eſpera, tudo ſuporta.

⁸ A caridade nunca ſe perde: Mas quanto ás profecias, aniquiladas ſeraõ: E quanto ás lingoas, ceſſaraõ: E quanto a o conhecimento, ſera aniquilado.

⁹ Porque em parte conhecemos, e em parte profetizamos.

¹⁰ Mas quando a perfeiçaõ viér, entonces o que he em parte ſerá aniquilado.

I Coríntios XIII, 1-10 (Tradução João Ferreira de Almeida, 1681)

Sei lá… já devaneei bastante por hoje… fico por aqui…

Notas de rodapé

  1. Na verdade, depois de ler esse parágrafo denovo, eu fiquei pensando que eu de fato não sei se esse negócio de “o verbo haver tem que ser singular” é algo que aconteceu naturalmente, ou se foi cagação-de-regra de algum gramático. Eu tentei dar uma buscada, mas o Gugo não foi muito útil, e na falta de saco de arrumar eu só pus essa nota de rodapé aqui.  2

  2. Por outro lado, como os postos militares não concordam em gênero (uma mulher é uma “soldado”), isso pode dar sempre a impressão de que militares são normalmente homens (o que, aliás, é verdade – e inclusive é o resultado de que homens são obrigados a servir =/ ).  2

  3. Na verdade, até que me interessa, mas não “do ponto de vista científico”. Como acho que fica claro no texto como um todo, eu to muito bem interessado na “política” da coisa, mas não acho que é o trabalho do cientista de base se preocupar com esse tipo de coisa. O negócio é estudar o fenômeno.  2