Ineficiência, perfeccionismo brasileiro e ética na Psicologia
17 Nov 2019(me foi dito que se traduz “eye-tracking” como “rastreamento ocular” em PTBR. Assim, sigo essa terminologia nessa publicação)
Contexto
Em Agosto eu fui à Conferência Européia do Movimento Ocular (ECEM, na sigla em inglês), uma conferência bienal que ocorreu em Alicante, na Espanha. Essa conferência é a maior conferência sobre rastreamento ocular da Europa, e eu fui lá pra apresentar o resultado de um trabalho de meses tentando analisar os dados de um experimento que eu rodei, no qual eu usei um rastreador ocular. (no caso, o poster que apresentei era sobre algoritmos pra tentar corrigir os dados – se tudo der certo, vai sair um artigo logo sobre isso)
Na conferência, conheci três brasileiros, cujos nomes não lembro, mas com quem foi legal conversar sobre como é fazer pesquisa no Brasil. O meu objetivo em especular sobre o assunto era justamente saber como seria a minha vida caso eu resolvesse voltar ao Brasil após o doutorado. Na discussão, eventualmente comentei sobre a burocracia para rodar os experimentos no país, e sobre alguns perrengues em se lidar com o comitê de ética por lá.
Pra quem não sabe, todo experimento psicológico feito com pessoas precisa passar por um comitê de ética, que decide se os dados a serem coletados e o procedimento a ser realizado não fere certos padrões de ética. A idéia seria tentar evitar que, por exemplo, um certo experimento gere algum trauma ou desconforto: o benefício à humanidade em responder a certas perguntas deve ser maior do que o custo moral em que a resposta incorre. Assim, comitês de ética existem no mundo todo, em tudo que é universidade. E, enquanto todo mundo reclame da sua existência como um entrave à realização de seu trabalho (porque demora, e é burocrático, e precisa preencher formulários, e burocracia do diabo), eles são bons. O que é problemático no Brasil não é, portanto, a sua existência. O que é problemática foi o que eu descobri depois…
Perfeccionismo à brasileira
Em Setembro do de 2018, um ano antes do ECEM conferência, eu passei dois meses no Canadá. Meu objetivo por lá era rodar dois experimentos, um dos quais era justamente o que me levou ao ECEM desse ano. Na época, tive que preencher pela primeira vez certos formulários que seriam mandados a um comitê de ética. Como detestasse a burocracia, “reclamei” pra uma amiga, formada em Psicologia, sobre como era chato lidar com aquilo. A reclamação levou a uma conversa sobre o tempo entre a concepção de um experimento e a efetiva realização do mesmo, e sobre como o comitê de ética gerava ainda mais atraso.
É que no meu caso, os experimentos claramente não têm problem algum. Pessoas adultas sentam-se na frente de um computador, calibram o rastreador ocular, e lêem frases (ao todo, 72 frases) na tela. Ao fim de cada frase, elas pressionam a barra de espaço, e o computador mostra uma perguntinha fácil sobre a frase, junto com duas alternativas, que elas respondem pressionando ou X ou M no teclado. As frases não têm conteúdo impróprio (são frases sobre economia/finanças), e as pessoas têm todo o tempo que precisarem pra responder. Elas podem parar o experimento quando quiserem, e podem inclusive ir ao banheiro se quiserem.
A conversa com a minha amiga, porém, me levou a descobrir que, enquanto esse comitê no Canadá era negócio de duas semanas, no Brasil isso é história de quatro-fodendo-meses! (Na minha Universidade, inclusive, se o experimento tem certas características – algumas das quais eu indiquei no parágrafo anterior –, eu nem preciso passar por comitê algum.) Quatro meses!
Mas tá… até então, eu supunha que o problema fosse só a burocracia: no Brasil, deve ter pouca gente pra muita demanda. É normal esperar que nem tudo funcione perfeito por lá. Mas daí eu descobri novas coisas com a conversa em Alicante…
O problema é que os comitês de ética brasileiros (aparentemente) seguem padrões muitíssimo mais restritos que os de qualquer outro lugar no mundo. Padrões que honestamente não fazem absolutamente sentido algum, que tornam o custo de fazer psicolingüística por lá basicamente proibitivos. Deixa eu dar um exemplo. Em qualquer experimento de psicolingüística de qualquer periódico conhecido, na hora de descrever os experimentos, é comum encontrar frases como as seguintes:
Vinte e quatro falantes de espanhol (15 fêmeas) foram pagos para ser participantes ingênuos1 (“Twenty-four native speakers of Spanish (15 female) were paid to be naive participants”, Hartsuiker, R. J., Pickering, M. J., & Veltkamp, E. (2004). Is syntax separate or shared between languages? Cross-linguistic syntactic priming in Spanish-English bilinguals. Psychological science, 15(6), 409-414.)
ou
Quarenta e nove estudantes de graduação da Universidade de Illinois participaram do estudo para [o recebimento de] créditos parciais de curso.2 (“Forty-nine undergraduate students from the University of Illinois participated in the study for partial course credit”, Gagné, C. L., & Shoben, E. J. (1997). Influence of thematic relations on the comprehension of modifier–noun combinations. Journal of experimental psychology: Learning, memory, and cognition, 23(1), 71.)
O que essas frases indicam é que é totalmente comum que duas coisas ocorram em experimentos psicolingüísticos: (1) que pesquisadores dêem uma compensação financeira (i.e., paguem) aos participantes dos estudos; ou que (2) professores façam com que os alunos de suas disciplinas participem de experimentos, sob o pretexto (que eu tomo como perfeitamente aceitável) de que isso lhes ensinará como essas coisas funcionam.
É verdade, é claro, que esse não é o caso sempre. Por exemplo, em muitos artigos não se diz nada sobre o que os participantes receberam em troca de sua participação; e em alguns estudos se deixa explícito que eles eram voluntários. Desse último caso, achei legal exemplificar com um artigo do professor que me recebeu lá no Canadá:
A participação foi completamente voluntária e nenhum [participante] recebeu qualquer recompensa em troca de sua participação (“Participation was fully voluntary and none [of the participants] received any reward in exchange for their participation”, Arppe, A., & Järvikivi, J. (2007). Every method counts: Combining corpus-based and experimental evidence in the study of synonymy. Corpus Linguistics and Linguistic Theory, 3(2), 131-159.)
Mas o que me tirou os butiás dos bolsos3 foi escutar que os comitês de ética no Brasil exigem que a participação seja sempre 100% voluntária, e nunca associada nem a qualquer recompensa nem a uma tarefa de aula. A alegação seria (ou pelo menos isso foi o que me foi dito na conferência) de que isso constituiria “coação” e portanto não seria ético (aos olhos do comitê). Mas na prática o que isso significa é que o custo de arranjar participantes no Brasil é mais alto, e os experimentos demoram mais pra rodar. Da forma como eu vejo, isso infelizmente só contribui pra uma maior burocratização e ineficiência da pesquisa brasileira, e reflete um perfeccionismo que não faz o menor sentido.
Conversando com a minha amiga psicóloga denovo sobre essas coisas, ela me disse que tem gente no Brasil que defende ferrenhamente essas regras dos comitês de ética brasileiros. Eu honestamente acredito que uma das duas seguintes coisas ocorram:
- As pessoas no Brasil acreditam que essas regras são as regras comuns no mundo todo. Esse é o caso menos pior: é irônico que, num país onde a gente tem sempre a atitude (incorreta, de fato) de que as coisas nunca funcionam, a gente esteja sendo muito mais cuidadoso com a ética nos nossos experimentos do que basicamente qualquer outro país no mundo. Infelizmente, esse cuidado excessivo nos leva à irrelevância, com uma produção científica muito mais restrita do que poderia ser se fosse possível que os professores levassem a massa gigantesca de estudantes a participar dos estudos feitos na própria Universidade.
- Ou as pessoas no Brasil são só perfeccionistas mesmo. Esse seria o caso realmente difícil de resolver. Em que ganham os comitês de ética brasileiros em ser os mais restritos do mundo?
Conclusão
Essa postagem ficou meio bagunçada, e creio que vai servir como um rant sobre “porque, ainda que eu queira voltar pro Brasil, normalmente fico receoso”. Ao escrevê-la, fiquei pensando que é uma pena que eu ainda não migrei o blog pra outro lugar onde eu possa receber comentários. Ainda assim, se quem quer que me leia (se é que há quem o faça) quiser me mandar uma resposta sobre isso, fico feliz em recebê-la em johncbgamboa@gmail.com .
É claro que, quando eu me refiro a “os comitês de ética”, eu falo de uma massa disforme que talvez inclusive nem seja tão homogênea quanto eu faço parecer. Talvez seja inclusive possível que em outras Universidades tudo seja completamente diferente (as únicas vozes que escutei até agora vieram de PUCs, e é perfeitamente possível que nos outros lugares os comitês sejam mais tris). No mais, pondero esses detalhes ao considerar sobre a minha migração de volta ao Brasil. Seria maravilhoso se eu pudesse realizar experimentos sem ter de lidar com bizarrices locais do tipo das que eu mencionei.
Notas de rodapé
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Não sabia como traduzir “naïve participant”. Esses são simplesmente os participantes “normais”, que, não tendo idéia de o que está sendo investigado, foram convidados (ou, nesse caso, pagos) para participar do experimento. ↩
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Mesmo problema com “partial course credits”. Isso significa que algum professor deles lhes deu como tarefa (de alguma cadeira que eles tavam fazendo) que fossem e participassem de um certo número de horas de experimentos. Em geral, isso é bom pro estudante, que aprende sobre como os experimentos funcionam, e é bom pros pesquisadores, que têm acesso mais fácil a participantes para seus experimentos. ↩
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Caso algum não-gaúcho me leia, isso significa “surpreender” ↩