Retrospectiva 2020 (parte 1)
15 Jan 2021Esses dias eu vi o seguinte vídeo:
Quando eu o vi, eu concluí que a pessoa que o postou tinha perdido completamente o contato com a realidade. O problema é que explicar o porquê disso é difícil: as coisas que ele diz tem seu fundo de verdade, mas normalmente “não são bem assim”. Quando eu disse à pessoa que esse vídeo é um absurdo, a pessoa disse que não discutiria comigo sobre Bolsonaro, porque sabe que “eu sou contra”. Bom… eu até que poderia não ser: no tempo da eleição, o voto era uma escolha difícil entre duas opções extremamente ruins, e o Brasil acabou escolhendo a direita. Na época, eu não esperava um governo bom, mas tinha a expectativa de pelo menos alguma “estabilidade”: o país tinha passado por muita loucuragem nos últimos anos.1 Mas eu sou contra incompetência, e esse governo mostrou que tem incompetência de sobra.
O objetivo dessa nova série de postagens é explicar por que eu acho o governo incompetente. Eu também quero mostrar um negócio muito louco que ocorre entre eleitores bolsonaristas: um esquecimento incrível daquilo que acabou de acontecer. Esse esquecimento, eu creio, é movido por duas coisas:
- As mídias pró-bolsonaro, que promovem uma narrativa que parece coerente se a pessoa não se lembra dos detalhes
- O monopólio da verdade que elas detêm. Ou seja, eleitores pró-bolsonaro só acreditam no que dizem as mídias bolsonaristas.
A pessoa que postou o vídeo inclusive me disse que não assiste à Globo ou à Band há dois anos. “Não acho notícia confiável”. Por isso, eu resolvi que nessas postagens só vou usar mídias pró-bolsonaro, e algumas entrevistas diretamente com a pessoa (em que é óbvio que não tem como tirar de contexto o que ele disse). Por exemplo, eu pretendo usar a Jovem Pan (a que eu assisto toda semana pra me manter informado sobre o que pensa a direita – eles eram menos absurdos, mas vieram gradativamente migrando pra direita desde ao longo do ano passado), ou o Record News. (fico feliz em receber opiniões de outras mídias obviamente pró-bolsonaro.)
Porém, nessa primeira postagem, eu quero rebobinar ainda mais e criticar um ex-ministro do governo que em 14/02/2020 deixou o executivo (o governo) e voltou pra câmara, onde (até onde eu sei) foi atuar por lá como aliado do governo: o deputado Osmar Terra (MDB-RS). Ele é médico, foi parte do Partido Comunista do Brasil, só pra eventualmente “se arrepender” e virar Ministro da Cidadania no governo Bolsonaro. Ele também foi Secretário da Saúde no RS durante a pandemia de H1N1 uns 10 anos atrás.
Vejamos o que ele disse à TV Câmara no dia 18 de Março de 2020, quando o Brasil tinha só uns 200 casos:
Algumas coisas que ele disse aí:
- (1min45) A pandemia iria durar poucas semanas
- (2min43) “Esta epidemia, na minha opinião, vai ser menor e [vai causar] muito menos dano pra população do que a epidemia do H1N1”
- (4min07) “Todas as epidemias virais seguem mais ou menos o mesmo curso.”:
- (4min11) Demora 4~5 semanas até atingirem o ápice;
- (4min38) Depois, em mais umas 4~5 semanas, tendem a desaparecer. “Já tá desaparecendo inclusive nos lugares onde ela começou”
- (5min19) “Os trabalhos todos publicados sobre pandemia mostram que suspender aula não adianta nada. Não tem impacto no ritmo de contágio”
Eu acho que eu não preciso explicar agora que tá tudo errado aqui. Sobre esse último ponto, o meu entendimento é que os trabalhos dizem justamente o contrário; mas eu acho que esse assunto merece uma postagem própria sobre o assunto.
O Osmar Terra foi um dos caras que mais espalhou desinformação no início da pandemia. Aparecia em tudo que é lugar. A entrevista a seguir ele deu uma semana depois, no dia 26 de Março de 2020. Aqui ele fez outras previsões ridículas:
- (1min21) “Quando surgem os primeiros casos detectados o vírus já tá espalhado […] em milhares de pessoas que não vão ter nenhum sintoma”
- (3min32) “Isso é uma curva de 12 semanas” (mesma ladainha de antes)
- (4min07) “na sexta semana tá no auge”
- (5min18) “é raríssimo um adulto abaixo dos 50 anos, sadio, que não tem outra doença, adoecer”
- (7min50) “Nós devemos chegar no pico da epidemia na terceira semana de Abril”
- (9min08) “Termina no final de Maio, início de Junho”
- (12min01) “99.6% das pessoas que forem infectadas pelo vírus … não vão sentir nada”
- (16min12) “[H1N1] matou muito mais gente do que o Coronavirus vai matar”
Ele próprio depois diz quanta gente morreu no surto de H1N1 no Brasil em 2009: foram 58mil casos e 2100 mortes (16min17). Ele também diz que (16min43) a gripe sazonal no Rio Grande do Sul mata 1000~1200 pessoas por ano. Aos 16min57 ele sugere que no Brasil “é provável” que, com todos os casos, acabem matando mais ou menos por aí.
É óbvio que eu não preciso explicar que todas essas previsões se mostraram erradas. Tanto que o artigo da Wikipedia sobre ele diz que entre algumas pessoas na internet ele passou a ser chamado por nomes como “Osmar Erra” ou “Osmar Terra Plana”. Mas ainda assim, é interessante ver como ele ainda hoje é convidado pra falar na TV. A entrevista a seguir é de 9 de Dezembro de 2020, logo após ele ter se recuperado de uma infecção de COVID e ter sido internado num hospital em Porto Alegre:
Denovo, ele fala groselha:
- (2min17) “A Suécia ficou lá aberta todos esses meses … e não morreu uma criança de COVID”
- Minha resposta: Eu procurei os dados sobre isso e não consegui encontrar. É sabido que morrem poucas crianças, mas não é pra isso que serve o lockdown: o lockdown é pra proteger os professores e os pais dessas crianças. De qualquer forma, vou falar sobre isso em outra postagem
- (3min21) O Fiuza diz que “hoje já temos levantamentos confirmando … que essas áreas mais trancadas não tiveram menos óbitos”. Denovo… daqui pra frente vou ignorar coisas relacionadas a lockdown. É algo que merece uma postagem própria.
- (4min48) “Em geral, abaixo dos 70 anos [a resposta inflamatória causada pelo vírus] é muito leve”
- Minha resposta: Ééé… em muitos casos pode ser, mas de acordo com os dados dos Estados Unidos, metade das hospitalizações são de pessoas com menos de 65 anos
- (8min11) “O que aconteceu de diferente foi que esse vírus demora mais pra chegar à imunidade de rebanho. O segredo de terminar qualquer epidemia é a imunidade de rebanho.”
- Minha resposta: e a vacina?
- (8min42) Ele responde: “Nunca uma vacina terminou uma epidemia”
- Minha resposta: e a gotinha contra paralisia infantil? E o sarampo? Não tinham sido eliminados por vacina? (ele pode argumentar que não eram uma epidemia. Mas convenhamos… não é esse o ponto: a paralisia infantil foi completamente eliminada do Brasil por uma gotinha!)
- (9min23) A partir daqui ele começa a sugerir que mais da metade da população teria uma “imunidade natural” contra o virus. Ele cita pesquisadores aleatórios. Eu não achei notícia alguma nem estudo algum cujos autores são esses dois (Karl Friston e Michael Levitt).
- (11min15) “O pico tá na 19a semana epidemiológica.”
- Minha resposta: groselha.
- (11min25) “Não houve um novo surto … que piorou as internações hospitalares”
- Minha resposta: me pergunto se ele saberia responder por que Manaus teve uma segunda onda de internações agora, em Janeiro, que colapsou o seu sistema de saúde. Será que é porque essas previsões dele estavam DENOVO erradas?
- Ele segue falando que tem que testar a vacina, ignorando que o teste da vacina é justamente o seu uso. A vacina permanece sendo “testada” quando aplicada, justamente porque não é possível fazer diferente. Na minha opinião, isso só espalha desconfiança sobre a vacina, e ignora que os testes que a gente já têm mostram que a mortalidade da vacina é no mínimo menor que a do vírus.
- (24min46) Depois de ter falado e falado de imunidade de rebanho na primeira metade da entrevista, ele fala que é um problema que a vacina de Oxford tenha ~70% de eficácia, porque “30% das pessoas vão tomar achando que vão estar protegidas e não vão estar protegidas”. É justamente pra isso que servem os outros 70%: o objetivo da vacina é chegar à imunidade de rebanho!
- (26min39) “São 6 milhões mas na verdade são 60 milhões que já foram infectados, porque esse virus, pela letalidade dele, que é 0.27%, ele contamina muito mais do que aparece”
- Minha resposta: na verdade, NINGUÉM SABE AINDA a letalidade do virus. Os dados indicam que o valor pode ser qualquer coisa entre 0.25% e 10% – talvez um chute bom seja algo como 1% no momento (?).
(Eu vou me focar na cloroquina também em outra postagem, então não vou comentar aqui)
Note-se que o número de internações do Coronavirus é enorme! No começo da pandemia, ouvi dizer que era de 19%. Não achei o dado, mas num estudo da USP essa taxa ficou na faixa dos 10%.
O Osmar Terra parece ter entendido que as pessoas acreditam mais se ele citar nomes de pesquisadores. A essa altura, porém, ninguém mais deveria estar dando ouvidos a um cara que falou tanta bobagem no início da epidemia. É impressionante que alguém dê. Pra mim o problema é: a Jovem Pan nunca “admitiu” que ele tava errado. E o bolsonarista que recebeu video dele no início do ano nem lembra mais. A narrativa dessa direita nunca ressucita os erros dele, e ignora quanta gente morreu por causa desses erros.
O problema de combater esse tipo de desinformação é que dá muito trabalho. As pessoas recebem vídeos com ele dizendo isso no WhatsApp e não têm discernimento o suficiente pra saber. Como o Osmar Terra é supostamente alguém “estudado”, as pessoas acabam acreditando. Quem realmente sabe das coisas acaba recebendo pouca atenção (porque não aparentemente tem interesse político nisso).
Alguém que claramente sabe das coisas, e tava muito esperto pra tudo o que tava rolando é o Átila Iamarino, que a Jovem Pan gosta de chamar de Youtuber (porque ele é a pessoa por trás do canal Nerdologia), mas que por acaso também é biólogo, e que foi pós-doutorando (ou seja, pesquisador2) na Universidade de Yale (aqui tem link pra um artigo dele em que ele trabalhou com o vírus Ebola, justamente durante o surto que teve na África em 2014). Importantemente, ele não é político, e o trabalho dele no Youtube é o de divulgar a ciência de uma forma fácil de compreender. É óbvio que alguém que trabalhou com pesquisa num surto de uma doença infecciosa poucos anos atrás deve saber bem do que tá falando. O “alarmista” Átila Iamarino tava dizendo justamente o contrário de tudo o que o Osmar Terra dizia já lá em Março. Em fevereiro ele já dizia que a gente talvez precise tentar “achatar a curva” (ou seja, evitando contato e ficando em casa) se começar a ter transmissão comunitária. Também disse que (~50min) o Brasil tava muito bem preparado pra combater o virus, por conta do SUS (que tem uma capilaridade grande, estando presente em tudo que é lugar do país).3 Nessa live ele também já disse (~51min) que provavelmente só íamos ter vacina em 2021, e que (~56min) a economia ía tomar no cu esse ano.
No dia 18 de Março, o mesmo dia da primeira entrevista com o Osmar Terra, o Átila já dizia que:
- (35min47) Se a gente fechasse _naquele exato momento_ as cidades onde tinha surto, a gente teria pelo menos 3 meses de pandemia ainda (extrapolando pelos dados da China). Ou seja, se agíssemos naquele momento, a pandemia duraria mais do que “fim de Maio / início de Junho”, como disse o Osmar Terra. Se a gente não agisse naquele momento, o cenário poderia ser muito pior.
- (38min41) Mesmo depois que tivermos vacina, elas vão demorar meses pra serem produzidas.
Dois dias depois, ele publicou uma outra live, dessa vez com números concretos (de fato, o vídeo inteiro vale a pena. Tem muita coisa interessante nele! No capítulo previsão ele põe um áudio de 2016 onde ele próprio basicamente diz o que aconteceu em 2020):
- (4min45) A gente tem pelo menos 1~1.5 anos antes de ter vacina (num cenário otimista).
- (10min36) O ministro da saúde tinha anunciado naquele dia que o sistema de saúde brasileiro entraria em colapso em Abril. Interessantemente, um lugar em que essa previsão se realizou foi Manaus,, onde a pandemia foi basicamente ignorada no começo da crise, e nenhuma medida de isolamento social foi tomada.
- (31min16) “Assim como parar o país um pouco depois [em relação à China] foi suficiente pra Itália ter mais mortes […], parar o país um pouco depois vai fazer com que a Itália só possa sair da quarentena alguns meses depois”
- (31min45) “Pra cada semana que a gente demorar agora [pra entrar em quarentena], vocês podem esperar mais um mês ou dois [de epidemia comendo solta]”
- (57min28) “Num cenário de mitigação, em que a gente não suprime as pessoas, não mantém elas em casa, e deixa mais do que o básico funcionando: a gente ainda [terá] leitos faltando, … e a gente teria … pelo menos 1 milhão de mortos até o fim de agosto” (isso ele sugere extrapolando os números de um estudo do Reino Unido.)
(suprimir as pessoas, aqui, significa lockdown)
Na época, todo mundo o chamou de alarmista por falar em 1 milhão de mortos. Tanto que até ele acabou em Abril “se justificando” e fazendo esse fio no Twitter, explicando que isso é SE A GENTE NÃO FIZESSE NADA. Faz pouco tempo, a Jovem Pan reviveu esse assunto, com o Augusto Nunes basicamente perguntando “onde tá o milhão de mortos?”, e insistindo que não tinha segunda onda nenhuma. O cara inclusive consegue ter a cara de pau de dizer “não tem leito faltando em lugar nenhum”. Dois meses depois, a gente já vê Manaus entrando em colapso denovo, e o Brasil já registrou record de novos casos num só dia no dia 7 de Janeiro de 2021, e a média de mortos nos últimos 7 dias já voltou a cruzar os 1000 mortos diários no dia 11 de Janeiro de 2021. O Brasil já tem mais de 200000 mortos oficiais hoje, e isso porque testa pouco! O número real de mortes é provavelmente maior, e a gente só vai saber de verdade mais pra frente, quando olhar o excesso de mortes.
Como já dizia o Temer:
Notas de Rodapé
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Eu vou fazer uma postagem sobre isso ainda em algum momento. Ambos os lados na minha opinião ignoram demais as próprias desvantagens, o que gera ainda mais polarização. ↩
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Pós-doutorando é uma palavra chique que não significa nada. É o cara que tá num limbo entre “terminou o doutorado” e “não tem ainda experiência/conhecimento/capacidade/autonomia pra virar Professor”. Ninguém “tem pós-doutorado”. Não existe um “curso de pós-doutorado”. O que existe é a pessoa trabalhar como “pós-doutor” por um tempo, fazendo pesquisa, dando aula, adquirindo experiência para que, eventualmente, ela possa atuar como Professor. ↩
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Evidência de que o Brasil tava preparado foi que o Uruguay só agora tá sofrendo a sua primeira onda. Tudo bem que o país é pequeno, mas por que então que o RS sofreu muito mais com a doença? Claramente eles têm algo que o RS não tinha. ↩