Dos ingleses não reconhecidos

Há poucos dias, em uma conversa de internet, eu usei a expressão “Inglês Indiano” pra me referir a características específicas do inglês usado por pessoas da Índia. Na situação, eu estava em meio a pessoas que eu entendo terem uma orientação política pendente à esquerda (isso é relevante para entender alguns dos meus argumentos a seguir). Algumas pessoas questionaram o uso da expressão e sugeriram as seguintes possibilidades:

  1. Que essa seria uma expressão racista
  2. Que seria melhor se referir a isso como “offshore English”
  3. Que se existe algo como “Inglês Indiano” então deveria haver algo como “Inglês Brasileiro”

Meu objetivo com essa postagem é argumentar contra esses três pontos. Como a conversa não se seguiu (logo um outro acontecimento tomou lugar da discussão), eu sinto que tem o perigo de essas pessoas permanecerem acreditando nesses pontos, o que eu acho bem problemático (e justamente racista).

Inglês Indiano não é uma expressão racista

Tipo… de fato, não teria como ser. Bem “por definição”, a expressão não tem absolutamente qualquer relação com raça. As pessoas etnicamente indianas que cresceram nos EUA não falam Inglês Indiano. Um japonês que crescesse na Índia falando o Inglês do país estaria falando Inglês Indiano. A etnia de alguém é uma característica absolutamente independente da caracterização dessa variedade de Inglês.

Mesmo assim, seriam “Inglês Australiano” ou “Inglês Britânico” expressões racistas sob essa mesma lógica? Me pergunto se alguém sugeriria que é racista falar em “Inglês Sul-Africano”. Pelo contrário, eu diria que negar à Índia a possibilidade de possuir um “Inglês” sim seria preconceituoso (ou racista?). A diferença entre, por um lado, a Austrália, a Nova Zelândia e o Canadá, e por outro, a Índia, o Paquistão e as Filipinas (todos os quais têm o Inglês como língua oficial mas somente alguns dos quais têm um Inglês “reconhecido”) poderia ser a “raça percebida” das suas sociedades? Talvez, mas eu não acredito nisso.

Na verdade, em vez disso, eu prefiro acreditar que a diferença entre esses dois grupos de países é a sua “relevância econômica”: se de repente, a partir de amanhã, a Austrália decidisse (e, aliás, de fato já o faz) que o seu Inglês agora é diferente, e que pra estudar em suas Universidades ou fazer negócio na Austrália uma pessoa precisaria passar num teste de “Inglês Australiano”, todo mundo abaixaria a cabeça e aceitaria que “Inglês Australiano” é “diferente”. Ninguém gostaria de deixar de fazer negócio com a Austrália por causa de uma teimosia sem sentido. Mas se por outro lado amanhã o Paquistão resolver fazer o mesmo talvez haja muitas gente (e muitas empresas?) que simplesmente prefira não entrar no Paquistão.

Racismo, portanto, me parece não fazer sentido nessa discussão. Volto a isso nos próximos pontos…

“Offshore English” é uma expressão do capeta

Aqui vem o meu motivo pra ter dito que a orientação política das pessoas ao meu redor era à esquerda. Eu acho curiosíssimo (!!!) que alguém com essa orientação política tenha preferido usar essa expressão especificamente, em vez de “Inglês Indiano”. Offshore English não é uma expressão “de lingüista”1. Offshore English é expressão do “ambiente corporativo”. Pra mim isso é tão bom quanto “alinhar”, ou “fazer um sync”, ou qualquer uma dessas coisas que dizem nas empresas.

E a expressão inclusive não captura o significado real da coisa. A não ser que seja instruído para isso, Indiano em geral não fala “Offshore English”. Tem um monte de características do Inglês Indiano que não são “standard” em outros Ingleses e que não são “simplificações pra todo mundo poder se entender”. Deixa eu dar dois exemplos…

Exemplo 1: digamos que eu seja colega de um indiano em um curso na Universidade e tenha esquecido de fazer a lição de casa. Quando eu chego na aula, o indiano me pergunta did you do the homework?. Ao responder No, I didn’t, ele me responde even I didn’t do the homework. O que isso significa? Em “Inglês Standard” isso significaria algo como “normalmente eu teria feito o; mas dessa vez até eu não fiz o tema”. Porém, no Inglês Indiano, “even I” significa simplesmente “eu também”. Ele não é mais nerdola que eu… só falou algo de acordo com o seu próprio dialeto.

Exemplo 2: digamos que agora eu e ele tenhamos dividido a lição de casa e cada um de nós decidiu fazer uma das perguntas. Na dúvida, eu pergunto Ok… I’m gonna answer the question number 1, e ele me responde com yes, do that only (em vez de algo como “yes, just do that”). Esse “only” no fim da frase é mais uma característica comum do Inglês Indiano. Não é “standard”, e tem gente que até desgosta disso. Pra mim é uma tradução direta de hin em Hindi, que significamente normalmente “somente”, mas é justamente usado pra fazer ênfase (como nesse caso).

Meu ponto, portanto, é: Offshore English não é Inglês Indiano.

Se existe algo como “Inglês Indiano” então deveria haver algo como “Inglês Brasileiro”

Bom… aqui eu vou dizer que sim… concordo que deveria existir algo como um “Inglês Brasileiro”. E de fato provavelmente até mesmo exista gente que estude uma “categoria” de “Inglês Brasileiro”. Os sons da nossa primeira língua e o modo como as pessoas à nossa volta falam Inglês definitivamente têm um efeito no nosso próprio Inglês. Mas eu acho que não é verdade que “se existe um deveria existir o outro”.

Eu creio que esse argumento seja em parte o resultado de não-conhecimento sobre a história Índia (não que eu seja algum grande conhecedor do assunto, por outro lado). É ignorar que a Índia foi ocupada por ~200 anos pelos britânicos (e só ficou independente em 1947). Que a burocracia estatal da Índia (e do Paquistão, de fato) é toda ou em Inglês ou traduzida eventualmente pro Inglês. Que as Universidades dão aula exclusivamente em Inglês, e que o Inglês funciona como língua franca em regiões onde não se fala Hindi (como no sul).

Alguém poderia argumentar: “ahh, mas eles também têm outras línguas oficiais”. De fato, a Índia tem ambos o Hindi e o Inglês como línguas oficiais (sem contar as línguas regionais, que são muitas); o Paquistão também fala Urdu (denovo, sem contar um monte de outras línguas regionais); e as Filipinas falam Filipino. Mas e daí? Eu não vejo ninguém questionar a legitimidade do espanhol Paraguaio só porque o Paraguai também dá ao Guarani status de língua oficial; ou o espanhol Boliviano só porque o Estado é “plurinacional” e (pelo menos supostamente) eleva ao mesmo patamar o Espanhol e as línguas indígenas da região. E eu não vejo ninguém questionar o Inglês Canadense só porque eles também reconhecem o Francês como língua nacional.

Pelo contrário, eu acho que uma outra boa parte do motivo pelo qual “Inglês Indiano” soa “racista” é justamente o racismo de quem ouve a expressão. Inglês Indiano é justamente o “termo neutro”. Colocar o Inglês Indiano “dentro do mesmo saco” de outras variedades é, na minha opinião, deslegitimizar o direito do Indiano de chamar o seu Inglês de seu.

(pela minha argumentação acima, pode parecer que eu defenda a existência de um “Inglês Paquistanês” também. Aqui eu acho que o buraco é um pouco mais embaixo, mas a resposta curta é “talvez”)

Notas de Rodapé

  1. De fato, a literatura é cheia de artigos usando justamente a expressão “Indian English”, como dá pra ver na própria Wikipedia